Segundo dados compilados do Relatório Justiça em Números 2020, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há no Brasil mais de mais de 77 milhões de processos em tramitação na Justiça. Isso significa que existe um processo para quase três habitantes.
Ademais, o Brasil possui uma das maiores cargas de trabalho na Justiça do mundo. Conforme dados oficiais, há mais de 6.962 processos por juiz e uma elevada taxa de congestionamento, 68,5%, Ou seja, o Brasil é o país campeão em judicialização no mundo.
Diante disso, o judiciário brasileiro tem buscado, sobretudo, aumentar a velocidade de processamento de processos, investindo no desenvolvimento de tecnologia jurídica e Inteligência Artificial (IA). Neste propósito, pode-se afirmar que o Brasil tem alcançado níveis promissores em relação ao uso desta tecnologia.
É o que mostra, por exemplo, uma pesquisa coordenada pela Fundação Getulio Vargas (FGV) ao fazer um raio-x de todas as experiências e soluções em relação ao uso das novas tecnologias na Justiça. Divulgada em março deste ano, a pesquisa intitulada de “Tecnologias Aplicadas à Gestão de Conflitos no Poder Judiciário com ênfase no uso da inteligência artificial” mapeou o uso de IA nos tribunais brasileiros entre fevereiro e agosto de 2020.
Por sua vez, o estudo revelou que o judiciário até então contava com 64 projetos de IA em funcionamento ou em processo de implantação, em 47 tribunais do país, além da Plataforma Sinapses do CNJ. Esses números revelam que metade dos tribunais têm um projeto de inteligência artificial implantado ou em implantação.
O Relatório de Inteligência Artificial é considerado uma das mais completas pesquisas já realizadas sobre o tema e teve também como objetivo ser um dos dispositivos de promoção da meta referente a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável que o judiciário brasileiro tem se proposto a cumprir.
Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça tem orientado a justiça nesta transformação digital. A própria pesquisa da FGV aponta que parte deste desenvolvimento de IA deve-se aos atos normativos editados pelo CNJ, como:
- Resolução CNJ nº 335, que estabelece a política pública para governança e gestão do processo judicial eletrônico;
- Resolução nº 345, que dispõe sobre o Juízo 100% Digital;
- Resolução CNJ nº 358, que regulamenta a criação de soluções tecnológicas para a resolução de conflitos por meio da conciliação e mediação;
- Portaria CNJ nº 242, que institui o Comitê de Segurança Cibernética do Judiciário.
O papel do Judiciário para garantir uma melhor qualidade da justiça
Tanto o Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário (CIAPJ) da FGV, quanto o tema da pesquisa “Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário brasileiro com ênfase em Inteligência Artificial” vão ao encontro das políticas de acompanhar as metas referentes ao objetivo sustentável da Agenda ONU 2030 no Brasil, atendendo principalmente ao ponto 16 da Agenda que destaca:
“Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, fornecer acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.”
Neste âmbito, o judiciário busca aperfeiçoar e melhorar a qualidade da justiça desenvolvendo soluções com foco na eficiência do sistema de justiça e redução de custos.
Por sua vez, a Agenda 2030 é um compromisso global firmado no âmbito das Nações Unidas baseado em 17 objetivos, distribuídos em 169 metas nas áreas de economia, desenvolvimento social e proteção ambiental que envolvem o comprometimento de governos, setor privado, sociedade civil e cidadãos.
Até o final da década de 2030, o propósito é cumprir uma agenda de metas para:
- erradicação da pobreza;
- proteção do planeta;
- garantia da prosperidade para todos.
Dito isso, veja como o judiciário brasileiro tem se voltado para a adoção de projetos para liderar a mudança em direção à “ciberjustiça”.
5 exemplos de projetos de IA do judiciário
1. Sinapses [2018]
Sinapses é o resultado de uma parceria entre o CNJ e o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) para ser uma plataforma voltada para o desenvolvimento e a disponibilidade em larga escala de modelos de IA.
Principais finalidades:
- Automatizar tarefas repetitivas por meio de ferramentas como predição do tipo de movimento processual;
- Gerar texto/autocomplete, identificar seções em um acórdão e outras funcionalidades que agilizam o trabalho dos assessores e magistrados.
- Ser aplicado nos juizados especiais em casos repetitivos que representem um grande volume processual.
Resultados: Em ambiente de testes, verificou-se que cada assessor leva, em média, 2 minutos e 50 segundos para realizar a triagem de um processo. A triagem de cerca de 227.728 processos levou apenas alguns minutos.
2. Mandamus [2020]
O Mandamus – desenvolvido pela equipe interna do judiciário de Roraima – é voltado para o cumprimento de mandados, por meio de automação e distribuição eletrônica desses documentos. O sistema automatiza todo ciclo, iniciando com a expedição do mandado, passando pelo acompanhamento e finalizando com a assinatura e certidão digital do processo.
Principais funcionalidades:
- Ampliar o banco de dados;
- Aprimorar a análise da decisão;
- Criar mandados sem erros;
- Distribuição de mandados de forma mais eficiente.
Resultados: Sustentabilidade, racionalização dos gastos públicos, redução da sobrecarga de trabalho dos servidores e retrabalho manual e repetitivo.
3. Victor (2019)
O Victor – desenvolvido pela equipe interna do Superior Tribunal Federal (STF) – é um robô em treinamento para atuar nas etapas da organização do processo para aumentar a eficiência e a velocidade da avaliação judicial. Os tribunais do Brasil podem utilizar a Victor, por exemplo, para pré-processar recursos extraordinários logo após sua interposição (recursos interpostos contra decisões judiciais).
Principais funcionalidades:
- Separar e classificar as peças processuais mais usadas nas atividades do STF;
- Executar a identificação dos recursos que se enquadram em um dos 27 temas mais recorrentes na justiça;
- Especificar 5 principais peças dos autos: acórdão recorrido, juízo de admissibilidade do recurso extraordinário, petição do recurso extraordinário, sentença e agravo no recurso.
Resultados: O Victor reduz o tempo utilizado por um servidor do Tribunal na realização de uma tarefa de, em média, 44 minutos para cinco segundos.
4. Elis [2019]
Elis é um sistema baseado em IA desenvolvido pelo judiciário de Pernambuco utilizado para examinar novas ações de execução tributária e decidir quais estão de acordo com as regras processuais e quais são extintas por decadência.
Principais funcionalidades:
- Analisar e triar processos;
- Eliminar a divergência de dados nos despachos iniciais dos processos;
- Processar demandas repetitivas, atos burocráticos, realização de penhoras e consultas em órgãos externos.
Resultados: Antes de o sistema ser implantado, a conferência inicial de cerca de 70 mil processos levava aproximadamente 18 meses. Com o sistema de IA, tal processamento leva em torno de 15 dias, ou seja, é 36 vezes mais rápido.
Nota: O Elis foi disponibilizado na plataforma Sinapses, do CNJ, podendo ser utilizada por outros tribunais do país.
5. Sócrates
O Sócrates foi “treinado” a partir de dados de 300 mil decisões judiciais para ler novos casos e agrupar aqueles com problemas semelhantes para que possam ser julgados em blocos.
Principais funcionalidades:
- Redução do esforço na triagem de processos;
- Apoio das atividades de análise de processos;
- Identificação antecipada das controvérsias jurídicas do recurso especial.
Resultados: Identificar processos que tratam da mesma matéria em um universo de 2 milhões de processos e 8 milhões de peças processuais, o que abrange todos os processos em tramitação no STJ e mais 4 anos de histórico, em 24 segundos. Além de monitorar automaticamente os 1,5 mil novos processos que chegam diariamente ao Tribunal para seleção de matérias de interesse.
Para saber mais sobre esses robôs e outras aplicações de IA, faça o download da pesquisa na página do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário: Publicações CIAPJ – FGV.
Regulamentação do uso da IA no judiciário brasileiro
O uso da IA no Judiciário foi regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pelo Decreto (Portaria) CNJ 271, de 4 de dezembro de 2020. De acordo com o decreto, a utilização da IA pelos tribunais ocorre por meio da plataforma Sinapses, que funciona como um repositório centralizado para a colaboração, transparência, melhoria e divulgação dos projetos de tecnologias no judiciário.
A proposta que visa instituir a Política Nacional de Inteligência Artificial no Brasil tem como principais fundamentos:
I. Desenvolvimento inclusivo e sustentável;
II. Respeito à ética, aos direitos humanos, aos valores democráticos e à diversidade;
III. Proteção da privacidade e dos dados pessoais;
IV. Transparência, segurança e confiabilidade (artigo 2º).
Além de diretrizes e princípios que devem nortear a aplicação da IA nos sistemas judiciais, o projeto estabelece os instrumentos da Política Nacional de Inteligência Artificial como os programas transversais desenvolvidos em parceria com órgãos públicos e instituições privadas, fundos setoriais de ciência, tecnologia e inovação e convênios para o desenvolvimento de tecnologias sociais.
Conclusão
Percebe-se cada vez mais que a inteligência artificial (IA) oferece o potencial de mudar a sociedade, a economia, o Estado e, inclusive a justiça de uma maneira benéfica quando implementadas de maneira adequada e transparente. As iniciativas citadas neste artigo mostram, por exemplo, que inúmeras aplicações de IA podem ser utilizadas para decisões mais inteligentes, assim como para o cumprimento eficiente de tarefas públicas, moldando o judiciário com mais velocidade, economia e controle.